Há um tempo atrás comecei aqui no blog uma série que tem por objetivo resgatar nomes de cantores, compositores e artistas em geral que são negligenciados pela grande mídia ou até mesmo pelo púnlico. Nem sei mais quantos posts fiz com esse tema, mas hoje darei continuidade. Antes de mais nada, devo me desculpar pelo abandono ao blog, mas é que as ocupações aumentam, o tempo on line diminui e também não há muitas novidades e lançamentos relevantes nos últimos tempos. Voltando ao post de hoje, vou falar de Maria Gladys, que de nome assim ninguém deve saber de quem se trata, mas basta uma foto para que todos a reconheçam.
Sempre vi Maria Gladys na TV fazendo empregadas sem relevância alguma, e fui me atentar para a história dela numa madrugada qualquer, vagando por canais sem audiência, me apaixonei por aquela loucura setentista que ela exalava, e há muito tempo penso em escrever a respeito, mas nunca consegui. O texto original foi publicado no Jornal da Cidade, em 16 de novembro de 2008. Bora lá conhecer essa mulher que tem história pra virar filme, livro e sem sensacionalismo nenhum. São cruezas admiráveis, como revela seu rosto já riscado pelo tempo.
Um apartamento de fundos na Avenida Atlântica. Maria Gladys abre a porta. O cheirinho de insenso transborda da sala decorada com móveis caquéticos, livros e algumas fotos que chamam os olhos. Num retrato caseiro, que se enxerga logo, Glauber Rocha fuma um baseado no canto da boca, com ar debochado. Bem Glauber. Gladys não faz cerimônia. Manda ir entrando e se acomodando. O show começa. Ela fala andando de um lado para o outro, sem economizar nos gestos, nas frases inspiradas, no raciocínio rápido, nas histórias inacreditáveis. Cigarrinho numa mão, copinho de cerveja na outra.
Há dois anos, a atriz protagonizou a cena mais surreal da sua carreira de mulher que sempre viveu como se não houvesse amanhã. Ela estava no Cevada, um boteco de esquina em Copacabana. De repente, ouve gritos:
— Gladys! Oh, Gladys, corre aqui! Rápido!
Era o cineasta Neville de Almeida, estacionado na frente do bar. Ele lhe passa o celular. Do outro lado da linha está Lee Jaffe, amigo-irmão de Jean Michel Basquiat, fotógrafo, videomaker e integrante da trupe de Bob Marley e Peter Tosh nos anos 70, autor do compêndio do reggae “One love”. Os dois trocam meia dúzia de palavras. Uma semana depois, chega um email de Jaffe com fotos da família. Gladys percebe uma semelhança suspeitíssima entre Rachel, sua segunda filha, e o primogênito do artista. A suspeita gerou um exame de DNA. E o fim de uma dúvida cruel. Jaffe, um caso de amor dos tempos em que a atriz morou em Londres, é o pai da moça, que até então se pensava ser filha de um inglês que Gladys conheceu numa festa onde Mick Jagger trajava um tutu de bailarina azul-celeste.
— Nunca escondi da Rachel que ela era filha de Woodstock — diz Gladys.
— O Lee era da nossa corriola em Londres. Naquela tarde, ele me ligou depois de uns 30 anos. Parei o carro na porta do Cevada para falar com calma e vi a Gladys. Não acreditei na coincidência. Dias depois, ela me manda um email com fotos dos filhos do Lee. Respondi: “Acabou a dúvida, amiga. Manda uma foto da Rachel para ele” — conta Neville.
A biografia de Gladys é assim: uma sucessão de casos surpreendentes, que ela relata com o dom de artista que Deus lhe deu. E o talento dela está voltando à cena “cabeça”. Musa do cinema marginal nos anos 70, queridinha de diretores como Julio Bressane e Domingos de Oliveira, a mulher feia viveu nos últimos anos uma sucessão de empregadas domésticas em novelas. Algumas inesquecíveis, diga-se, como a espalhafatosa Lucimar, de “Vale tudo”. Agora, no entanto, a atriz que nunca se encaixou nos padrões convencionais virou um documentário e está na mira de dois diretores cultuados, o pernambucano Cláudio Assis e o promissor Bruno Safadi, que a escalaram para seus próximos longas. O documentário é da cineasta Paula Gaitán, ex-mulher de Glauber, que resolveu contar a história da atriz no filme “Vida — Sobre Maria Gladys”, exibido no Festival do Rio, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e já agendado para o circuito de festivais europeus. A louca trajetória de Gladys merece mesmo platéia.
— O cinema brasileiro deve muito a Maria Gladys — diz Cláudio Assis. — Hoje se sacrificam talentos em prol de rostinhos bonitos. Há muito estou de olho nessa danada.
Voltemos aos anos 70. Naqueles tempos ainda de swinging London, a atriz vivia por lá, em Notting Hill, cercada por sua turma: Bressane, Neville, Rogério Sganzerla, Glauber, Dedé e Caetano Veloso, Sandra e Gilberto Gil, Hélio Oiticica, Jorge Mautner, Gal Costa, Tim Maia. Alguns eram moradores fixos, outros flutuantes. Todos enxotados do Brasil pela ditadura. Nascida e criada no subúrbio do Rio, histriônica, como bem a define seu amigo Bressane, Gladys caiu de boca no mundo. Virou hippie, adotou o visual psicodélico, tornou-se partidária do sexo livre, embarcou na onda do LSD. Sua única obrigação era assistir a concertos de rock. Com Tim Maia, companheiro de sempre, como Nelson Motta conta na biografia que escreveu sobre o cantor, ela viu o histórico show de Ray Charles no Royal Albert Hall. Na época, o par mais constante de Gladys era Lee Jaffe. Com ele, ela passou uma temporada em Nova York, onde freqüentou a galera de Andy Warhol. Segundo a atriz, a relação encaixava-se no estilo vigente: “Eu, você e todos nós.” No meio desse frenesi, no final de 1972, Gladys ficou grávida. As amigas se juntaram para fazer as contas e apontar o pai. Na regra de probabilidades, ganhou John Coward, com quem Rachel vive desde os 15 anos. O tal exame de DNA virou uma novela, ainda sem final feliz. Mãe e filha, amigas do peito, agora querem reverter a confusão.
— A gente chegou a Londres em pleno desbunde. Estava todo mundo tomando ácido na praça. Aí desbundamos também. O Lee era meu e de muitas outras. Mas acho que era mais meu — brinca Gladys. — Naquela tal festa, eu queria ter comido o Mick de bailarina. Mas acabei com o John. A Rachel nasceu em agosto de 1973, no Brasil. Com 15 anos, quis conhecer o pai que a gente arrumou para ela e se mandou para a Inglaterra. Agora está uma loucura. Como é que a gente vai contar para o John?
A essa altura do papo, Gladys já bebeu umas duas cervejinhas, fumou vários cigarros e percorreu alguns quilômetros: da cadeira de balanço, no fundo da sala, até o espelho, perto da porta. Ela estreou na vida já em grande estilo, causando barulho no bairro do Cachambi, subúrbio do Rio. A mãe de Gladys, também Rachel, tinha estreitamento de bacia e perdeu dois filhos no parto. Grandes e fortes, as crianças morreram asfixiadas. Quando Rachel engravidou pela terceira vez, a fofoca tomou conta da Rua Garcia Redondo. A vizinhança não se conformava. Apavorada, a mulher enfaixou a barriga para que o bebê não crescesse. Assim facilitaria o parto. Deu certo. Em 23 de novembro de 1939, nasceu Maria Gladys Mello da Silva. Sã e salva. Ela deveria ter se chamado Maria Inúbia. Mas, segundo acredita, foi salva pelo pai, um radiotelegrafista que trabalhava numa firma inglesa e gostava de nomes estrangeiros. Pensando bem, Maria Gladys é mesmo melhor do que Maria Inúbia.
— No meu aniversário, a rua parava. Todo ano eu vestia uma cor diferente. No ano em que usei amarelo, acordei com paralisia infantil. Minha mãe botou em mim a praga do amarelo. Nunca mais — conta. — Eu tinha 3 anos. Todo dia a gente pegava o bonde, depois um ônibus, e descia na Praça da Bandeira para ir ao médico. Eu tomava uma injeção chamada Zinfeni, que doía pra caralho. Meu único problema hoje é abaixar.
Na adolescência, Gladys ficou malfalada. Quando ela passava, a mulherada da rua cacarejava e jogava milho. Tudo porque a menina gostava de dançar nos bailões de Elizeth Cardoso. Tinha 12 anos. Aos 15, engravidou. Envergonhada, a família se mudou para o Grajaú, onde nasceu Glayson, mistura de Gladys e Edson, o pai, que logo sumiu no mundo. A mudança alterou o rumo da vida de Gladys. Na nova vizinhança, ela conheceu um menino chamado Roberto Carlos, e começou a namorá-lo. Ele tinha uma turma — Carlos Imperial, Tim Maia e Erasmo Carlos. Imperial organizava apresentações do bando no “Clube do rock”, na TV. Gladys virou umas das bailarinas oficiais do programa. Na biografia de Tim Maia, Nelson Motta descreve bem o clima: “O palco pegava fogo quando Carlos Imperial chamava os dançarinos Maria Gladys, Cidinho Cambalhota, Nilza, Bolão e Clito.” A farra durou até o final dos anos 50, quando ela se mudou com a família para Copacabana, porque queria fazer teatro.
— Passei a viver entre o Cervantes, o Beco da Fome e a praia. O Roberto já estava tocando na Boate Plaza. Só que já estava metido a besta. E eu estava entrando em outra — conta.
Em 1959, Gladys estreou no Teatro Municipal, com a peça “O mambembe”, de Arthur Azevedo. Em ótima companhia: Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Ítalo Rossi e Sérgio Britto. Foi um sonho entrar para a companhia Teatro dos Sete. Depois de dois trabalhos com o grupo, Gladys decidiu que seria uma atriz de verdade e enfiou a cara nos estudos. Nessa mesma época, conheceu Domingos de Oliveira.
— Ele foi o primeiro homem moderno que encontrei na vida — diz Gladys.
O diretor a introduziu de vez no mundinho do teatro intelectual. E ela passou a integrar a companhia Teatro Jovem, de Kleber Santos. Em “O chão dos penitentes”, apareceu com os seios nus no cartaz de divulgação da peça, entrando para a História como a primeira atriz séria a mostrar o corpo. Era a queridinha do grupo.
— A Gladys fez o papel principal de “Sétimo céu”, a primeira peça que montei, em 1962 — lembra Domingos. — Nunca namorei a Gladys. Como não tínhamos máscaras, logo vimos que éramos amigos. Mas ela era muito atraente, uma gata que atemorizava os homens por excesso de sinceridade. Gladys nasceu sem persona. É ela. Não se engana.
Um comentário:
Gladys! E esse texto aí saiu na Revista de domingo do Globo em 2008. Eu tinha até semana passado (quando joguei tudo fora).
(aquelas chata que só comenta pra fazendo adendo (?))
Postar um comentário